quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O caos depois do desastre

Como num cenário pós-apocalíptico, o Haiti consome-se depois
do terremoto. Os fracos se encolhem, os fortes se enfrentam
e os mortos alimentam fogueiras humanas. No meio de tudo,
cada resgate reacende as esperanças


Diego Escosteguy, de Porto Príncipe

Orlando Barria/EFE
LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA
Multidão no centro destruído de Porto Príncipe: saques, socos, brigas e uma única lei,
a dos mais fortes


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Sob as trevas da noite o pavor aumenta. Os raros focos de luz são dos faróis de carros, dos postes de quartéis com geradores e das fogueiras... Assustadoras fogueiras alimentadas por escombros e corpos. Do Hospital-Geral de Porto Príncipe emergem urros de dor de pacientes. Com os primeiros raios de sol chega a notícia do resgate de uma criança com vida e a esperança renasce. Abarrotado pelo volume colossal de feridos em estado grave, o Hospital-Geral tornou-se o maior centro de amputação de Porto Príncipe. Um lugar de horrores, onde se aguarda a vez de morrer, ao lado de cachorros, lixo e do odor onipresente da gangrena. No pátio do hospital, feridos tentam sobreviver em colchonetes, ao ar livre e sob tendas. Num deles, Widlyn Pierre, uma jovem e bela haitiana, grita de dor.

Fotos Psg/Other Images, Damon Winter/The New York Times, Jewel Samad/AFP e Joe Raedle/Getty Images
CRIME DESORGANIZADO
Há duas penas em vigor no Haiti para saqueadores, como os da foto à direita.
A primeira é o linchamento coletivo em praça pública (à esq.); a segunda, não menos brutal, é enfrentar
a fúria da polícia, como a menina de 15 anos baleada na cabeça

Em Porto Príncipe, os vivos dormem nas ruas; os mortos, nos escombros. Os números da catástrofe já parecem não fazer nenhum sentido. Foram 75 000 corpos lançados em fossas, mas quem os contou? Praticamente inexistente, o governo anuncia planos de transferir 400 000 desabrigados da capital para acampamentos organizados nas imediações da cidade destruída. Como? Quando? Por enquanto, dorme-se sob o céu negro e o calor asfixiante do Caribe, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas. São os momentos mais perigosos para a sobrevivência dos haitianos, quando os mais fortes encontram a cumplicidade da noite para atacar os mais fracos. Brigam por comida, água, remédios – ou mesmo por bonés e óculos velhos, o tipo de farrapo que alguns haitianos ainda possuem. Há troca de socos até por restos dos destroços. Nenhum haitiano parece aceitar que outro tenha mais do que ele, ainda que esse mais se resuma a lixo. Em regiões miseráveis, como o bairro de Delmas, os desabrigados acampados nas praças e ruas improvisaram fogueiras, feitas de tudo o que se pode encontrar: lixo, corpos, pedaços de madeira. Em outras, como Bel Air, a escuridão da noite mistura-se com a poeira dos destroços ainda pairando no ar. O Haiti, que sempre viveu próximo da barbárie, agora se queima por completo nela.

Fotos Orlando Barria/EFE, Caio Guatelli/Folha Imagem, Eduardo Munoz/Reuters, Carlos Barria/Reuters, Ramon Espinosa/AP e Ruth Fremson/NYT
A FOGUEIRA DA BARBÁRIE
Diante das dimensões da catástrofe, a ajuda não chegava para todos. Desesperados, sobreviventes
saqueiam, atacam e brigam até por restos dos destroços do terremoto

Quem tem parentes ou um fiapo de esperança fora da capital se amontoa em ônibus ou barcos superlotados, num êxodo esfarrapado rumo ao interior. A maioria não tem nada e vaga pela cidade. A sobrevivência agora se dá nas ruas, na grande lixeira na qual se tornou a capital haitiana. Praças viraram favelas, campos de várzea transformaram-se em camas. Os poucos motoristas andam na contramão, buzinam sem motivo. Emergiram duas classes de haitianos: os tendistas, aqueles cidadãos mais afortunados, que conseguiram estender seus pertences em uma lona nas praças, e os demais, que dormem direto no asfalto ou em calçadas. Os tendistas levam vantagem na luta pela sobrevivência. Por concentrarem grandes massas humanas, estão mais protegidos dos ataques de gangues – e se tornam mais visíveis aos voluntários que distribuem água e comida.

Porto Príncipe queima diferente em diferentes lugares. A Praça Boyer, em Pétion-Ville, bairro menos devastado da capital, é um condomínio classe A para os padrões haitianos pós-terremoto. Ali, como em outras praças, há crianças e bebês chorando, filetes de esgoto nas calçadas, dejetos. Há, porém, vendinhas de batata e banana verde, que podem ser compradas por poucos gourdes, a moeda haitiana. Alguma água chega por intermédio de doações internacionais. Num gesto que ilustra a formidável capacidade de resistência do ser humano, um grupo de professores e voluntários criou uma escolinha na praça. Eles cuidam de 270 crianças, dando aulas de francês, matemática e ciências, intercaladas com atividades lúdicas de canto e dança. As crianças sentam-se num chão de pedra para participar das atividades. Muitas têm sede e fome – 39 delas são órfãs. Diz Clarénce Johnny, coordenador da escolinha improvisada: "É uma forma de ocupar a cabeça das crianças e tentar fazer com que elas olhem para frente". Eram 17 horas, e ele estava dando aula em jejum.

As praças do centro da cidade, região onde só há ruínas, oferecem menos regalias aos haitianos. De longe, a Champ de Mars, que fica diante do que restou do Palácio Presidencial, assemelha-se a uma imensa feira de ambulantes, tal a profusão de lonas e barracas coloridas. De perto, é um pestilento amontoado humano. Há crianças tomando banho com água do esgoto, mães prostradas em pedaços de papelão, fezes e urina pelo chão, cachorros e porcos revirando o lixo a céu aberto. Vez ou outra, explodem discussões e brigas – sempre por comida. Noutra praça, em Delmas, Marie Therese tentava proteger Kevensson, sua filha de 6 meses, de uma chuva miúda que atravessou as cortinas de calor. Ela usava as mãos como guarda-chuva, mas sem sucesso: o bebê gritava. Therese estava sentada numa toalha. "É tudo o que me sobrou", ela disse, observando a filha. O que ela esperava para o futuro de Kevensson? "Nada", ela respondeu, os olhos vazios.

Crianças como Kevensson constituem o futuro perdido do Haiti. Não se sabe com exatidão quantas morreram desde o dia 12, mas certamente muitas mais ainda perecerão. Andando pelos escombros da cidade, depara-se com pequeninos corpos, que se confundem com as telhas e os tijolos. Ao lado, perambulam crianças sem família, desprotegidas, vítimas de uma catástrofe que não podem entender. Caminham sem direção aparente, vestindo trapos – a maioria só de camisa, imunda em razão da falta de banho e do acúmulo de poeira dos escombros. John Guerrie Dovillien, um menino mirradinho de 5 anos, vagava pelas ruas de Delmas em busca do pai. Acabou sendo acolhido no pátio de uma igreja evangélica, onde divide colchonete com outros órfãos. Ninguém sabe o que vai acontecer com eles.

Orlando Barria/EFE
EPIDEMIA DE MORTOS
No Haiti, caixões são uma raridade. A maior parte dos corpos é queimada ou enterrada em covas coletivas: à noite, dorme-se sob o céu negro, sentindo-se o cheiro fétido das fogueiras humanas

A fome e a sede levaram multidões de haitianos a invadir lojas, supermercados, casas. Moralmente, parece existir uma divisão: pegar comida, água ou qualquer coisa para colocar entre o corpo e o mundo devastado onde vivem é aceitável. Quem não faria o mesmo no maior de todos os estados de necessidade? Já saquear com o objetivo de revender é condenável e pode ser punido com a justiça das ruas ou os tiros dos policiais que, aleatoriamente, tentam estender um esgarçado véu de ordem sobre o caos. Alguns policiais usam lenços ou máscaras no rosto – proteção contra o cheiro que tudo invade e garantia de anonimato. Num supermercado que havia desabado no bairro de Delmas, pessoas desesperadas disputavam os destroços com uma retroescavadeira. Bailavam a dança da fome. Os mais atirados arriscavam-se entrando nos escombros, sob o risco de novos desabamentos, em busca de alimento e água. Segundos depois, a escavadeira retomava seus trabalhos, e os haitianos afastavam-se às pressas, escorregando pela pequena montanha de destroços, como se fossem moscas.

Gilberto Tadday
PRAÇA DA ESPERANÇA
Clarénce Johnny improvisou uma escolinha de rua para 270 crianças, com aulas de francês, matemática e ciências: "É uma forma de ocupar a cabeça das crianças e tentar fazer com que elas olhem para a frente"

Pelas ruas dos bairros mais pobres, havia poucos socorristas. Moradores pedem ajuda. "Há pessoas vivas lá dentro", era o que mais diziam. Numa dessas ruas, a Monsieur Guiyour, houve na terça-feira à tarde uma operação de resgate coordenada por chineses e mexicanos. Existia a possibilidade de que um haitiano ainda estivesse vivo, soterrado dentro dos restos de um prédio de dois andares. Dois cães farejadores confirmaram a suspeita. "Bem, então nos encontramos amanhã, às 7 horas", comunicou o chefe chinês ao colega mexicano. "Combinado", ele respondeu. A reportagem indagou por que não prosseguir com as buscas. "Deu 6 horas", o mexicano disse, no meio de uma rua vazia e silenciosa. "É uma questão de segurança e organização."

As grandes catástrofes têm um aspecto surreal. O que é mais necessário parece óbvio: água, comida, energia, socorro médico. De repente, alguém pensa: dinheiro também, como a sociedade vai se manter sem ele? E lá foram forças da ONU, incluindo militares brasileiros, resgatar os cofres dos bancos – num momento em que ainda se conseguia resgatar sobreviventes. No Hotel Montana, onde se hospedavam diplomatas e funcionários da ONU, as operações nos escombros prosseguiam sem parar. Depois de sete dias de soterramento, como se emergisse de 2 000 anos sob as ruínas de Pompeia, foi tirada uma senhora de 66 anos, Ena Zizi. Cantava, firme e forte. O pequeno Kiki, que virou o rosto feliz da mais infeliz das tragédias, aguentou oito dias e saiu rindo para a mãe (veja reportagem). No pátio de uma das muitas igrejas evangélicas de Delmas, via-se uma multidão de desabrigados que entoava alegremente músicas cantadas em crioulo, o dialeto local, que nada tinham de religiosas. Mulheres descalças dançavam em rodopios, homens erguiam os braços e crianças faziam trenzinhos. A mensagem nada secreta parecia ser: o desejo de vida vence a pulsação da morte.

Gilberto Tadday

LUZ NAS TREVAS
Num lugar de horrores, o Hospital-Geral de Porto Príncipe, transformado no maior centro de amputações do Haiti, a jovem Widlyn gritou e, depois, sorriu: no pátio, iluminado por uma lanterna, nascia o pequeno Cristopher


Num oceano de necessidades absolutas, brotavam pequenos gestos de ajuda. Julien Kossi é do Benin, trabalha para a Unicef e agora está colaborando na distribuição de água para os sobreviventes. "Mesmo que eu possa fazer pouco, vale a pena", ele diz. Na última quarta-feira, Julien foi até a base brasileira em Porto Príncipe, para coletar garrafas de água doadas por uma cervejaria. Depois, seguiu para levá-las a hospitais da cidade. Desde o terremoto, os militares brasileiros distribuíram 125 toneladas de alimentos e 84.000 litros de água. A freira Zelinda Caversan recebeu mantimentos do Exército. Irmã Zelinda mora há dez anos no Haiti e estava ao lado da missionária Zilda Arns quando o terremoto aconteceu. "A força do impacto jogou-a no chão. Vi quando o concreto caiu em cima dela", relembra a freira. Irmã Zelinda é diretora da Escola João Paulo II, que veio abaixo na tragédia. Quase 1 000 alunos carentes estudavam e comiam lá. Ela e as demais 36 irmãs estão dormindo em barracas improvisadas no pátio da escola, para ajudar a quem podem. "Enquanto eu tiver forças, vou ajudar. Quem sobreviveu é privilegiado."

No Hospital-Geral de Porto Príncipe, Widlyn Pierre continua gritando de dor. A enfermeira ajoelha-se no colchonete, liga uma lanterna e pede que ela respire. Suando muito, Widlyn segura-se no tronco de uma árvore e emite um longo e agudo uivo. Um bebê sai lentamente de seu ventre. Widlyn sorri. O nome de seu filho é Cristopher – e o Haiti é o seu futuro.


Fonte: http://veja.abril.com.br/270110/caos-depois-desastre-p-066.shtml

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